INTRODUÇÃO
As bonecas conhecidas como bebês reborn são confeccionadas artesanalmente para se parecerem com bebês de verdade, apresentando traços extremamente realistas de aparência, peso e textura de pele. Nos últimos meses, esse fenômeno ganhou destaque no Brasil, com diversas pessoas adultas – em especial mulheres – criando laços afetivos profundos com seus bebês reborn e até formando “comunidades de mães” com encontros em parques e eventos específicos. Esse movimento, que mistura ficção afetiva e realidade, alcançou tamanho alcance que chegou ao conhecimento do Judiciário por meio de casos inusitados: recentemente, um casal em processo de separação iniciou uma disputa judicial pela convivência e custeio de uma boneca reborn tratada por ambos como filha de criação. Tais situações levantam questões jurídicas inéditas no Direito Civil brasileiro, desafiando os limites dos conceitos de personalidade jurídica, família e patrimônio. Este estudo de caso analisa esse panorama, abordando o entendimento jurídico vigente no Brasil – incluindo o posicionamento do escritório Borges e Cruz Advogados – e examinando jurisprudências correlatas, além de investigar as origens do movimento “mães de reborn” e compará-lo com eventuais precedentes em outros países. Por fim, discutem-se os reflexos teóricos e práticos no Direito Civil, em especial quanto à proteção de bens de valor afetivo e os limites entre a emoção e o reconhecimento jurídico.
Apesar do crescente destaque midiático dado ao fenômeno das “mães de bebê reborn” no Brasil e no exterior, constata-se uma lacuna na literatura acadêmica especializada em Direito Civil que discuta de forma sistemática as implicações jurídicas dessa prática. A maioria dos debates encontra-se restrita a reportagens jornalísticas e manifestações avulsas de advogados em blogs ou redes sociais. Assim, há necessidade de um esclarecimento teórico-prático que oriente operadores do Direito — juízes, promotores, advogados e mediadores — sobre os limites e possibilidades de tutela jurídica em demandas que envolvem apego emocional a objetos hiper-realistas, especialmente no tocante à distinção entre bens de valor afetivo, animais de estimação e pessoas naturais.
O objetivo geral deste artigo é analisar, sob a ótica do Direito Civil, as demandas judiciais relativas a bebês reborn, evidenciando as razões jurídicas para o reconhecimento exclusivo dos aspectos patrimoniais e o consequente afastamento de pretensões familiares e de personalidade. Para tanto, os objetivos específicos são:
- Mapear o ordenamento brasileiro quanto à conceituação de personalidade e coisa, com ênfase na legislação e na jurisprudência recente;
- Investigar a origem do movimento “mães de reborn” e sua difusão internacional;
- Comparar, de forma crítica, posicionamentos do Judiciário em outros países (common law e civil law) diante de demandas análogas;
- Identificar reflexos teóricos para a teoria da personalidade jurídica e sugerir caminhos práticos de atuação forense.
Adotou-se uma metodologia qualitativa, baseada em pesquisa bibliográfica e documental, análise de decisões judiciais (STJ, TJ’s e cortes internacionais) e levantamento de matérias midiáticas especializadas. A delimitação temporal não se restringe a um período específico, pois inclui tanto as primeiras manifestações relativas aos reborns nos anos 1990 quanto eventuais julgados atuais, garantindo um panorama evolutivo completo.
PANORAMA JURÍDICO BRASILEIRO: PESSOAS VS. OBJETOS NO DIREITO CIVIL
No ordenamento jurídico brasileiro, somente pessoas (físicas ou jurídicas) podem ser sujeitos de direitos e obrigações. O Código Civil estabelece que a personalidade jurídica da pessoa natural começa com o nascimento com vida (art. 2º do CC), reconhecendo-se desde a concepção os direitos do nascituro, mas sempre condicionados ao nascimento. Fora desse espectro, temos os bens (coisas), que são objetos de direitos, mas não titulares de direitos próprios. Dentro dessa classificação, um bebê reborn é juridicamente considerado um objeto inanimado, um bem móvel, sem personalidade jurídica e sem capacidade civil. Em outras palavras, por mais realista e “fofo” que pareça a boneca, ela não é uma pessoa do ponto de vista do Direito e não pode titularizar direitos ou deveres próprios.
Assim, qualquer demanda judicial envolvendo diretamente um bebê reborn não pode ser tratada como questão de família ou filiação, mas unicamente como questão patrimonial. Esse é exatamente o entendimento externado por diversos juristas diante do caso recente: “bebê reborn é coisa, e coisas ainda não têm direitos no ordenamento brasileiro”, conforme resumiu um advogado de família. O escritório Borges e Cruz Advogados, ao se pronunciar sobre o tema, adota posição semelhante: apenas os aspectos patrimoniais dessas situações podem ter respaldo jurídico, já que a boneca não pode ser reconhecida como pessoa física nem sujeito de direitos pessoais (como direitos de personalidade, guarda ou alimentos). Assim, não há pessoa a ser protegida, apenas um bem de propriedade de alguém.
Do ponto de vista de família, isso significa que não cabe falar em guarda, visitação, autoridade parental ou adoção de um bebê reborn. Esses institutos aplicam-se exclusivamente a crianças reais (ou, no caso de adoção, também a adolescentes ou maiores incapazes nos termos da lei). Não existe previsão legal para “adoção” de objetos. Ainda que uma pessoa trate a boneca como se fosse filha, o Direito não lhe confere nenhum status de parentesco. Da mesma forma, não é possível requerer alimentação (pensão alimentícia) ou qualquer direito decorrente de filiação, já que inexiste sujeito de direito menor a ser tutelado. Tanto é assim que, no caso mencionado, a advogada que atendeu a cliente deixou claro, em tom de esclarecimento (e ironia), que “não defendemos os direitos de bebês reborns”, recomendando que questões de guarda, pensão, visitas etc. envolvendo a boneca fossem discutidas “com um psicólogo de confiança” e não no Judiciário. Em outras palavras, sobram às partes apenas caminhos extrajurídicos (psicológicos, terapêuticos) para lidar com o conflito afetivo, já que juridicamente a boneca não gera laços familiares.
Por outro lado, isso não impede que as questões patrimoniais relativas ao bebê reborn sejam analisadas à luz do Direito Civil. A boneca em si possui um valor econômico – muitas custam caro, chegando a cifras de vários milhares de reais – e pode ser considerada parte do patrimônio do casal (especialmente se adquirida em conjunto durante a união). No caso concreto, a “mãe” da boneca argumentou que investiu alto na aquisição do reborn e no enxoval, e requereu a divisão dos custos com o ex-companheiro. Nesse aspecto, o pedido equivale a uma divisão de bens ou reembolso de despesas, matérias de natureza obrigacional/patrimonial que podem, em tese, ser apreciadas pelo juiz. Da mesma forma, a conta do Instagram criada para a boneca – que acumulou seguidores e passou a gerar receita por publicidade – configura um ativo digital de valor econômico. Trata-se de um bem imaterial que integra o patrimônio das partes (a ser definido quem detém os direitos sobre ele). Sobre esse ponto, a controvérsia jurídica se assemelha a uma disputa societária ou obrigacional: decidir quem fica com a conta ou como dividir os lucros auferidos com ela. Em suma, somente as facetas patrimoniais – divisão de bens, ressarcimento de gastos, direitos sobre propriedade material ou digital – têm possibilidade de análise jurídica em demandas envolvendo bebês reborn. Todo e qualquer pleito de natureza estritamente emocional ou familiar (amor, afeto, convivência enquanto “filho”) esbarra na falta de objeto jurídico, dada a ausência de personalidade jurídica da boneca.
JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E OBJETOS DE VALOR AFETIVO
Por ser um fenômeno recente, não há ainda decisões judiciais publicadas que enfrentem diretamente a situação de bebês reborn. A ação mencionada – sobre a qual advogados se manifestaram publicamente – ainda estava em fase inicial em maio de 2025, e possivelmente nem chegou a uma sentença, podendo ter sido extinta ou resolvida extrajudicialmente dada sua natureza atípica. Entretanto, podemos buscar paralelos em jurisprudências análogas que envolvem objetos ou seres sem personalidade jurídica pelos quais as pessoas nutrem alto valor afetivo. Dois contextos se destacam: casos envolvendo animais de estimação e casos de bens materiais com valor sentimental (heranças de família, lembranças afetivas, etc.).
Animais de estimação: No Direito brasileiro tradicional, os animais sempre foram considerados bens móveis semoventes (possuem movimento próprio), portanto objetos de direito e não sujeitos. Todavia, o Judiciário tem reconhecido que animais de companhia ocupam um lugar especial, não podendo ser tratados exatamente como meras coisas inanimadas. Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu uma decisão marcante: a 4ª Turma entendeu ser possível regulamentar judicialmente o direito de visita a um animal de estimação após a dissolução de uma união estável. No caso, reconheceu-se ao ex-companheiro o direito de visitar a cadela yorkshire que ficara com a ex-parceira, fixando-se um regime de convivência semelhante a visitas de filho. Na fundamentação, o STJ afirmou que embora os animais continuem enquadrados como bens, “não se está frente a uma ‘coisa inanimada’, mas sem lhes estender a condição de sujeito de direito”. Criou-se assim uma espécie de terceira categoria: o animal não é pessoa, mas também não é equiparável a um objeto qualquer, devendo-se levar em conta a relação afetiva na solução do caso. Essa e outras decisões sinalizam uma tendência de se conceder tutelas pontuais para proteger o vínculo afetivo humano-animal, mesmo sem reconhecer personalidade ao animal. Por exemplo, já há casos isolados na jurisprudência permitindo guarda compartilhada de pets e até pensão alimentícia para custeio de animal de estimação após separação do casal (decisão do TJMG de 2021, considerada inédita).
No entanto, é importante destacar que os precedentes com animais não se aplicam diretamente aos bebês reborn, embora sirvam como analogia distante. O fator crucial nas decisões sobre pets é o fato de serem seres vivos sencientes, ainda que não pessoas. Mesmo ao conceder visitas ou guarda de um cão, o STJ frisou que não se trata de humanizar o animal ou equipará-lo a uma criança, e sim de proteger o interesse do próprio ser humano envolvido, bem como a dignidade humana refletida no vínculo afetivo com o animal. No caso de uma boneca, falta até mesmo a característica de ser vivo; trata-se literalmente de um objeto inanimado. Desse modo, a tendência provável é que o Judiciário brasileiro mantenha uma linha ainda mais conservadora: nenhum juiz deve conceder, por exemplo, guarda ou visitas referentes a uma boneca, pois isso equivaleria a dar tratamento de pessoa (criança) a algo que incontestavelmente não é. O máximo que se poderia cogitar, por analogia às decisões com pets, seria um juiz reconhecer um acordo entre as partes para revezar a posse da boneca (se ambas quisessem muito isso) – mas tal acordo teria natureza de transação patrimonial, não de guarda familiar. De fato, magistrados e advogados têm se mostrado reticentes com essas demandas, chegando a classificá-las como “mero capricho” ou questões de foro íntimo que não devem congestionar o Judiciário. É provável, portanto, que eventuais litígios sobre reborns sejam resolvidos sob a ótica de direito de propriedade (quem fica com o bem e seus acessórios) e obrigações (quem paga pelo seu custo), sem adentrar em arranjos de convivência forçada – salvo se as partes consensualmente firmarem algum ajuste privado.
Bens de valor sentimental: Outro campo pertinente é o das indenizações por dano moral decorrente da perda ou violação de objetos com forte valor afetivo para alguém. Em regra, a perda de um bem material gera, no máximo, dano material (equivalente em dinheiro), pois coisas não possuem honra ou sentimentos. Porém, a jurisprudência já reconheceu que certos objetos insubstituíveis, carregados de sentimento, quando destruídos ou extraviados por culpa de outrem, podem gerar sofrimento psíquico indenizável. O STJ possui precedentes determinando indenização por dano moral pelo roubo ou extravio de jóias de família e outros itens de estima, entendendo que o dano moral não decorre do valor econômico do bem, mas do abalo sentimental sofrido pela vítima. Nesses julgados, ressalta-se o valor imaterial daquele objeto para a pessoa (p.ex., anéis herdados de avós, fotografias únicas etc.), cujo desaparecimento causa tristeza além do mero aborrecimento comercial. Transpondo essa lógica para os bebês reborn, pode-se imaginar uma situação em que, por exemplo, terceiros causem dano ou destruição da boneca e isso afete profundamente sua dona. Numa separação litigiosa, se um ex-companheiro, movido por rancor, destruísse intencionalmente o bebê reborn da outra parte, é concebível um pedido de indenização por danos morais pelo abalo emocional causado – assim como ocorre em casos de violência contra animais de estimação dos quais o dono é próximo (onde também se admite dano moral). Nesse sentido, embora a boneca não tenha direitos, a pessoa lesada em seu apego emocional pode ter sua dor reconhecida e compensada monetariamente. Trata-se de proteger, em última instância, a dignidade e a saúde psíquica da pessoa humana envolvida, sem jamais transformar a coisa em sujeito.
A jurisprudência brasileira atual não acolhe direitos subjetivos de objetos, mas começa a acolher o valor da afetividade investida em objetos ou animais ao analisar consequências jurídicas. No caso dos bebês reborn, espera-se que os tribunais direcionem a solução para o âmbito patrimonial (posse/propriedade e eventualmente indenizações) e de direito das obrigações, evitando qualquer equiparação formal dessas bonecas a crianças reais perante a lei.
ORIGEM E EVOLUÇÃO DO MOVIMENTO “MÃES DE BEBÊ REBORN”
Para compreender melhor o fenômeno, é importante conhecer suas origens. Os bebês reborn surgiram inicialmente no mundo do colecionismo e das artes plásticas. O termo “reborn” (renascido, em inglês) passou a ser usado por volta da década de 1990 nos Estados Unidos, quando artistas e entusiastas começaram a modificar bonecas de vinil comuns para torná-las o mais realistas possível, “renascendo-as” com pintura especial, cabelos implantados e outros detalhes. Esses bonecos hiper-realistas ganharam popularidade primeiro como itens de coleção e obras de arte. A primeira boneca reborn famosa de que se tem notícia foi criada em 1999 por Karola Wegerich, uma artista alemã que confeccionou a peça para consolar um amigo que havia perdido um bebê. Desde então, a técnica e o hobby de criar bebês ultrarrealistas se espalharam pelo mundo, chegando ao Brasil nas décadas seguintes.
Originalmente, os reborns também tinham usos terapêuticos e educacionais: eram empregados em treinamentos de enfermagem e primeiros socorros (por terem peso e aspecto semelhante ao de um recém-nascido). Com o tempo, porém, começou a se formar uma comunidade de colecionadores que apreciavam essas bonecas pelo apego estético e emocional. Muitas pessoas que sofreram perda gestacional ou luto pela morte de um filho encontraram nos reborns uma forma de amenizar a dor – a boneca servia como um conforto simbólico. Outras, que por escolha ou circunstância não tiveram filhos, passaram a “adotar” bebês reborn para viver a experiência de cuidar de um neném, porém sem as responsabilidades de um filho real. Estudos em psicologia social indicam que tratar um objeto como substituto emocional pode representar tanto um mecanismo de enfrentamento saudável para alguns (desde que a pessoa tenha consciência de se tratar de uma boneca), quanto um possível sintoma de carência afetiva ou desequilíbrio quando levado ao extremo.
No Brasil, a popularização recente ocorreu em grande medida graças às redes sociais. Influenciadores digitais e celebridades compartilharam nas mídias suas experiências com bebês reborn, aguçando a curiosidade do público. Vídeos de “rotina com meu bebê reborn” e até encenações de “partos” dessas bonecas tornaram-se virais. Em 2023 e 2024, houve matérias em programas de TV de grande audiência (como o Fantástico, da TV Globo) sobre o assunto, bem como a organização de encontros temáticos. Surgiu até mesmo um vocabulário próprio: as artesãs que criam as bonecas são chamadas de “cegonhas reborn” (numa alusão bem-humorada às cegonhas que trazem bebês nos contos), e várias “mães de reborn” celebram simbolicamente o Dia das Mães com seus nenéns de mentira. Em 2025, uma proposta curiosa foi apresentada na Câmara Municipal do Rio de Janeiro para instituir o Dia da Cegonha Reborn no calendário oficial, homenageando as artistas desse ramo. Ou seja, o movimento saiu do nicho e tornou-se parte do imaginário popular, ao menos como “febre” midiática e assunto de debate cultural.
Entretanto, é preciso notar: independentemente da popularidade ou do significado pessoal que esses bebês de brinquedo assumem na vida de alguém, isso não altera sua natureza jurídica. Uma pessoa pode, no âmbito privado, dar nome à boneca, simular uma certidão de nascimento fictícia (algumas lojas até fornecem “certidões” simbólicas junto com o produto, como parte do kit), realizar batizados ou festas de aniversário imaginárias para o reborn. Tudo isso faz parte da liberdade individual e, até certo ponto, de práticas lúdicas ou terapêuticas sem consequência legal. O problema surge quando se tenta transportar essa ficção afetiva para a seara jurídica, demandando do Estado reconhecimento formal desses laços imaginários. Nesse ponto, prevalece a objetividade do Direito: a ordem jurídica enxerga apenas uma pessoa adulta proprietária de uma boneca, não uma mãe e seu filho. Assim, conhecer a origem do movimento nos ajuda a entender a motivação emocional das partes envolvidas – por exemplo, porque alguém brigaria judicialmente por uma boneca – mas não modifica os limites do que o Direito pode reconhecer.
O FENÔMENO EM OUTROS PAÍSES E A POSTURA DO JUDICIÁRIO ESTRANGEIRO
A tendência dos bebês reborn não é exclusiva do Brasil; ela já vinha se manifestando em diversos países, especialmente nos EUA e na Europa, há décadas. Nos Estados Unidos, existe um mercado estabelecido de reborn dolls e uma comunidade ativa de colecionadores e terapeutas que os utilizam. Histórias de mulheres que tratam essas bonecas como filhos substitutos aparecem esporadicamente na mídia norte-americana e britânica desde os anos 2000, muitas vezes suscitando debates sobre saúde mental. No Reino Unido, por exemplo, documentários televisivos já mostraram “mães de mentirinha” levando seus reborns ao parque e simulando rotina materna. Entretanto, do ponto de vista legal, não se tem notícia de casos em que o judiciário estrangeiro tenha concedido qualquer reconhecimento especial a esses objetos. Assim como no Brasil, nos países de common law (como EUA e Inglaterra) e em outros países de civil law, uma boneca é considerada personal property (propriedade pessoal) de seu dono, nada mais. Não há figura jurídica de “guarda de objeto” ou “adoção simbólica” com efeitos legais. Se um casal norte-americano se divorcia e disputa quem fica com a coleção de reborn dolls, essa disputa será resolvida na partilha de bens, exatamente como se fossem divididos os móveis da casa ou obras de arte. Não há intervenção de vara de família para avaliar melhor interesse ou similares, pois não se trata de um sujeito vulnerável, e sim de patrimônio do casal.
É interessante observar que alguns países avançaram um pouco mais na proteção jurídica dos animais de estimação, o que pode servir de contraponto. Nos EUA, por exemplo, estados como Califórnia, Illinois e Alasca aprovaram leis permitindo que juízes considerem o bem-estar do animal ao decidir com qual parte ele ficará após um divórcio. A Califórnia, em 2019, passou a autorizar formalmente a custódia compartilhada de pets, diferenciando-os de objetos inanimados nas disputas conjugais. Na Europa, países como a Espanha alteraram recentemente suas leis civis para reconhecer os animais de companhia como “seres sencientes” e não meras coisas, facilitando acordos de custódia de pets em separações. Todavia, mesmo nessas jurisdições mais sensíveis à questão animal, nenhum ordenamento foi ao ponto de atribuir personalidade jurídica a um animal, e muito menos o faria a uma boneca inanimada. Em outras palavras, não existe precedente conhecido – nem nos EUA, nem na Europa ou América Latina – de um tribunal conceder status de filho, ou determinar guarda ou direitos próprios, a um objeto de apego afetivo.
O que se encontra, isso sim, são casos pitorescos envolvendo a confusão entre bonecas e bebês reais, ilustrando mais uma vez que a lei só se move quando há interesse público real (normalmente, quando se pensa tratar de uma criança de verdade em risco). Por exemplo, em 2020 na Argentina, policiais chegaram a mobilizar o Consejo de Niñez ao encontrar um suposto recém-nascido abandonado que, para surpresa geral, era na verdade um reborn hiper-realista – a “busca por familiares” foi prontamente cancelada quando se descobriu que não se tratava de um ser humano. Histórias semelhantes de engano têm ocorrido: em 2008, nos EUA, uma boneca reborn foi deixada em um carro trancado, por conta disso, a janela do veículo foi quebrada à força por socorristas que acharam que era um bebê sofrendo; e em 2019, na Espanha, paramédicos foram chamados por transeuntes que viram um “bebê” sozinho em um veículo, que acabou por ser um reborn. Esses casos geram manchetes e alertam as autoridades para o realismo impressionante das bonecas, mas não resultaram em litígios judiciais sobre as bonecas em si – tratou-se de mal-entendidos rapidamente esclarecidos.
Também há registros de atos simbólicos no exterior, como pessoas que organizam batismos ou funerais para bonecas reborn (no Japão, por exemplo, existe uma tradição secular de realizar rituais de “despedida” para bonecas antigas, embora não especificamente reborn). Contudo, novamente, nada disso ingressa na esfera do Direito estatal; são manifestações culturais ou individuais sem efeito jurídico.
A postura dos judiciários estrangeiros tem sido a mesma que se espera do brasileiro: tratar o bebê reborn como um bem, sujeito às regras de propriedade e consumo, e jamais como uma criança ou sujeito de direitos. Até o momento, não há qualquer indício de que tribunais em outros países tenham cedido a pedidos de guarda, visitação ou pensão para bonecas. Caso tais pedidos tenham sido formulados (é possível que advogados em outros locais também tenham recebido consultas inusitadas), eles provavelmente foram rejeitados ou nem chegaram a virar um processo formal. A única seara em que esses objetos poderiam figurar em processos estrangeiros seria em testamentos ou heranças, se alguém deixasse em escritura a vontade de destinar sua coleção de reborn a alguém – o que seria cumprido sem problemas, pois são bens transmissíveis como quaisquer outros. Mas não se poderia, por exemplo, instituir uma fundação em prol da boneca ou legar parte da herança diretamente “para minha boneca X cuidar da outra boneca Y”, pois faltaria personalidade para figurar como beneficiária (nesse caso, o patrimônio ficaria com os herdeiros humanos ou, se muito, poderia ser administrado por alguém em favor de preservar a boneca, semelhante ao que se faz com animais de estimação via trust nos EUA).
Portanto, no cenário internacional não se vislumbra nenhum reconhecimento jurídico especial de bebês reborn. O fenômeno é visto muito mais como uma curiosidade social e psicológica do que como um tema de Direito. Essa uniformidade reforça a compreensão de que os limites jurídicos vigentes – pessoa vs. coisa – ainda são sólidos o bastante para não serem flexibilizados em face dessa tendência específica.
REFLEXOS TEÓRICOS E PRÁTICOS NO DIREITO CIVIL
Os casos envolvendo bebês reborn, embora rarefeitos e peculiares, suscitam reflexões interessantes no âmbito do Direito Civil. Eles se situam em uma zona limítrofe entre o mundo dos afetos e o mundo jurídico, testando como o Direito lida com projeções emocionais sobre objetos. Alguns dos principais pontos de reflexão teórico-prática são:
- Proteção de bens com valor afetivo: O ordenamento jurídico brasileiro tradicionalmente faz a dicotomia entre tutela de pessoas (direitos da personalidade, direito de família) e tutela de patrimônios (direito das coisas, contratos, sucessões). Todavia, a realidade mostra que pessoas atribuem muitas vezes um valor extrapatrimonial a certos bens. O Direito tem mecanismos indiretos para lidar com isso – como vimos, o dano moral por destruição de objeto de estima – mas não chega ao ponto de personificar o bem. A questão que se coloca é: o Direito deve criar categorias especiais para bens com valor afetivo? Por exemplo, já se discute no campo do Direito dos Animais se os pets deveriam ter estatuto jurídico sui generis (nem pessoa, nem coisa). No caso de objetos inanimados, a princípio não há movimento doutrinário similar, dada a falta de vida e senciência. Assim, a saída prática tem sido solucionar no campo obrigacional (indenizações, acordos de compartilhamento de uso etc.) sem inovar ontologicamente. Este tema dialoga com a ideia de “valor de afeição” na Teoria do Direito: reconhece-se o valor afetivo para o titular humano, mas não se cria um direito subjetivo próprio do bem.
- Fronteira entre a ficção afetiva e o reconhecimento jurídico: O Direito, em geral, é avesso a validar ficções quando elas contrariam dados objetivos – salvo as ficções legais expressamente previstas (como presunções absolutas). No caso das “mães de bonecas”, trata-se claramente de uma ficção privada: a pessoa finge que o objeto é um filho. O sistema jurídico não proíbe ninguém de fingir ou imaginar isso, mas impõe limites claros quando se tenta exigir consequências jurídicas reais dessa ficção. Um paralelo histórico: na Roma Antiga e em sociedades pre-modernas, havia estátuas ou objetos de culto tratados quase como entidades, porém o Direito sempre esteve fundado na distinção entre sujeitos capazes de vontade própria e meros artefatos. Os bebês reborn atualizam esse debate sob uma ótica contemporânea (não religiosa, mas emocional). E a resposta jurídica parece reiterar a fronteira: podemos respeitar sua liberdade de imaginar, mas não peça ao Estado para também “brincar” junto. Em termos práticos, isso significa que advogados e juízes enfrentarão essas demandas com uma combinação de sensibilidade e objetividade: sensibilidade para compreender o apego envolvido (direcionando, quem sabe, a pessoa a apoio psicológico, mediação etc.), mas objetividade para negar pretensões jurídicas impossíveis, evitando precedentes perigosos.
- Limites da personalidade jurídica: O conceito de personalidade jurídica é um dos pilares do Direito Civil, definido de forma relativamente rígida: pessoas naturais e pessoas jurídicas (entes abstratos aos quais a lei confere personalidade, como empresas, associações etc.). Fora dessas categorias, existem alguns entes despersonalizados com capacidade processual limitada (como o espólio, o condomínio edilício), mas que não chegam a ser sujeitos plenos de direito. A discussão sobre eventualmente alargar a personalidade para entidades não humanas tem ganhado força sobretudo quanto aos animais e, futuramente, à inteligência artificial (robôs). Já houve quem defendesse a ideia de um “habeas corpus” para grandes primatas ou status de sujeito para certas inteligências artificiais avançadas. Porém, o caso dos bebês reborn não se enquadra nessas discussões de ponta – afinal, a boneca não é senciente nem autônoma. Ela é inteiramente manipulada pela pessoa. Logo, conceder a algo assim personalidade jurídica seria uma ruptura drástica e sem precedentes lógicos. Até o momento, não há qualquer indicação de alteração legislativa ou jurisprudencial que ameace esses limites no Brasil; o consenso é de que a personalidade permanece restrita a entes humanos (e seus agregados, como nascituros) e pessoas jurídicas tradicionais. Os reborns servem, contudo, como lembrete de que o Direito pode vir a ser provocado de formas inusitadas conforme a criatividade humana e as carências emocionais das pessoas.
- Implicações práticas em processos judiciais: Do ponto de vista prático-forense, casos como o da “guarda do reborn” podem ser vistos como um alerta ao sistema de justiça sobre a importância de filtragem e manejo adequado de demandas. Existe o risco de incremento de litígios excêntricos (hoje é a boneca, amanhã poderia ser disputa por um personagem virtual ou avatar de videogame pelo qual alguém tenha apego, por exemplo). Os operadores do Direito precisam estar preparados para tratar com respeito as partes – que muitas vezes estão fragilizadas psicologicamente – mas sem alimentar a ilusão jurídica. Ferramentas como a mediação podem ajudar a redirecionar conflitos como esse para uma solução consensual ou para o campo emocional correto. Por exemplo, um mediador poderia auxiliar o ex-casal a chegar a um acordo informal de revezamento da boneca, se isso for saudável para ambos, ou convencê-los a encerrar a disputa patrimonial com compensação financeira, evitando prolongar o sofrimento. Já o juiz, caso a demanda chegue a termo, possivelmente terá de registrar em sentença algo didático, explicando que a lei não reconhece a boneca como filha, e extiguindo ou julgando improcedentes pedidos dessa natureza – ao mesmo tempo resguardando qualquer direito patrimonial (por exemplo, fixando que a boneca fique com quem comprou, mediante restituição de metade do valor ao outro, se couber, ou decidindo a quem pertence a conta de Instagram com base em provas de titularidade da conta). Um aspecto prático importante: não há ilícito em tratar a boneca como filho, portanto o Judiciário não pode impedir alguém de continuar com sua fantasia em âmbito privado; mas ele também não pode obrigar outra pessoa a participar da fantasia. No caso concreto, isso significa que o ex-companheiro não é obrigado a fazer “visitas” à boneca ou arcar com “pensão”, a menos que voluntariamente tenha assumido pagar parte das despesas (o que seria cobrável como dívida comum, nunca como dever parental).
CONCLUSÃO
Os bebês reborn representam um interessante choque entre o universo afetivo e o universo jurídico. O Direito Civil brasileiro, respaldado também pela experiência comparada, tende a manter a segurança jurídica reafirmando que pessoas são pessoas, coisas são coisas. No entanto, ao lidar com os reflexos práticos desses apegos, abre-se espaço para reconhecermos juridicamente o valor sentimental para os sujeitos humanos – seja através de soluções patrimoniais justas, seja pela sensibilização dos operadores quanto ao componente emocional subjacente. O limite crucial é não transpor a barreira da personalidade jurídica indevidamente: bonecas, por mais amadas que sejam, não se tornarão sujeitos de direito. Em vez disso, o Direito proporciona outras vias para que a justiça seja feita, sem trair sua lógica interna. Como bem ressaltou a advogada envolvida no caso pioneiro, certas questões pertencem mais ao divã do psicólogo do que ao fórum judicial. Cabe ao Direito, com prudência e humanidade, proteger os direitos reais (patrimoniais) das partes envolvidas, sem validar direitos imaginários. Desse equilíbrio depende a capacidade do sistema jurídico de responder adequadamente aos desafios inusitados que a sociedade lhe apresenta, preservando tanto a efetividade da lei quanto a compreensão sobre as necessidades humanas que emergem nessas novas tendências.
REFERÊNCIAS
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